NÓS DAMOS TRABALHO!!! NÃO!!!OS PAIS É QUE DÃO!!!
Nós, as crianças, reclamamos que todos os pais sejam atentos e especiais, ternos e mágicos, adivinhões e brincadores. E que, por mais preciosos que eles façam por ser, exigimos que se tornem, sempre, melhores pais.
Recordamos que os estragamos com mimos (por mais que nunca ninguém nos tenha dado a hipótese de fazermos, em relação a eles, um test drive, antes de os escolhermos só para nós). E que, apesar disso, temos sobre os ombros a pesada tarefa (que nunca regateámos) de olhar pela sua formação. Aliás, se fazemos birras ou lamúrias, se repetimos (mil vezes) um “já vou” e, outras tantas, o “não sei” não é porque seja essa a nossa vontade: é pelo brio de não pouparmos, um minuto que seja, na sua educação. E, por mais que a nossa dedicação não tenha limites, se lhes fazemos, sem descanso, a maioria das vontades, acorremos aos seus pedidos, toleramos os seus amuos, condescendemos com as suas regras (mesmo que, muitas vezes, eles próprios as não cumpram) é porque os queremos poupar às reclamações, por mais que isso acabe por consumir grande parte da nossa energia. Vendo bem, é por isso, e só por isso, que não correspondemos a uma ou a outra coisa que nos exigem. Unicamente porque, sem que se apercebam, e ao contrário da maioria de nós – que (como eles reconhecem) não dá problemas – os pais dão muito trabalho.
Aliás, e a este propósito, peca por tardio o reconhecimento da nossa condição de estudantes-trabalhadores e a consideração, para efeitos das deduções de que nos sentimos credores, do nosso trabalho para a sua formação (que, ao mesmo tempo que estudamos, é uma tarefa que nos ocupa o tempo quase todo). E que, se muitos de nós, ao chegarem aos trabalhos de casa, já não têm cabeça para mais nada, não é porque não queiram. É que, se já os pais dão as preocupações que se sabe, quando eles se organizam, com os professores, numa confederação de patrões das nossas vontades (com que tentam interferir no nosso dever de indignação) só nos resta acenar com moções de censura a tudo o que nos exigem, que ameace o contrato colectivo que, desde sempre, as crianças têm com a Humanidade. Onde se inclui aprender um ofício, como o de brincador. O colo e o mimo, com dedicação, e sem limite de tempo (acumuláveis com outras... retribuições). O direito a ser o filho único de cada pai (ao menos, trinta minutos, uma vez por semana). O direito às histórias da vida dos pais, contadas com os olhos e com uma voz com alma (e não como quem, em vez de se perder num livro comovente, lê o Diário da República). E a horas extraordinárias de pai e de mãe, “pagas” com mais ternura. (E se, a título de prémio de produtividade, como filhos, não levantarmos a mesa nem fizermos a cama, nos forem levar e trazer à escola, e nos pespegarem beijos amassarem com abraços, que isso nos seja reconhecido, desde aí, como direitos adquiridos que passem, obrigatoriamente, a constar, para sempre, como adendas às retribuições que nós merecemos.)
Lembramos, no entanto, que (contra a nossa aspiração secular) não existe uma entidade reguladora atenta aos desempenhos dos nossos pais. E que esse papel, muito mais que o reclamarmos para nós, devia ser de todos os avós (diante do qual eles nunca deviam vacilar): repreendendo os nossos pais (de preferência, na nossa presença) e açucarando os seus gestos, mais de acordo com as nossas nobres intenções. Recomendamos, aliás, que, sempre que pais e avós não estejam de acordo em relação à nossa educação, se decrete (já agora, por muito tempo!) a fiscalização preventiva da competência de quem nos educa, durante a qual passem a vigorar as regras dos mais velhos (que, como se sabe, são uma espécie de conselho de senadores cuja opinião nunca se devia ignorar).
Por tudo isto (unicamente, como forma de protesto), apresentamos a presente moção de censura, de forma a que nos seja reconhecida legitimidade para termos direito a:
1. À semana de trabalho de 40 horas – incluindo nelas aulas, ateliês de tempos livres, música, catequese, computadores, futebol ou ballet, e trabalhos de casa – a partir das quais todas as crianças deviam acumular, num banco de horas, os créditos com os quais tenham direito a reclamar outro regime contributivo por parte dos pais;
2. A brincar, todos os dias, por tempo generoso, sem o qual nunca se aprende nem a crescer nem a pensar;
3. A ter histórias contadas da alma para os livros, com as quais se vista com palavras, com personagens e com enredos tudo o que se passa dentro em nós;
4. E a ter pais que recuperem a capacidade para voltarem a conviver com o indispensável - seja a sentarem-se no chão, quando conversam baixinho; fecharem os olhos, enquanto brincam à cabra cega; verem formas nas nuvens, quando rebolam na relva ou fazerem bolos de chocolate, ao domingo, só para raparem as formas (com o dedo), sem ninguém ver;
5. Pais que deixem de correr, para chegarem a muitos lados ao mesmo tempo; porque, por mais que corram, todos os quilómetros do mundo nunca hão-de chegar para a distância que o coração é capaz de percorrer, entre um “tenho medo!” e um “gosto de ti!” Pais que sejam atentos e especiais, ternos e mágicos, adivinhões e brincadores. E que, por mais preciosos que façam por ser, sejam, para sempre, melhores pais.